por: Natalia Garrido – Psicanalista
“Como é que uma coisa assim machuca tanto? Toma conta de todo meu ser?” já nos questionou Alexandre Pires sobre o amor. Para entender as relações amorosas precisamos ir na história da humanidade, um dos pilares formadores do inconsciente coletivo, que arquetipicamente nos apresenta um determinado modelo de experiência a ser vivida.
Eros (ou também Cupido) é fruto da relação entre Afrodite (a Deusa do Amor) e Ares (o Deus da Guerra) e representa, por meio da mitologia, a essência daquilo que consideramos, como coletividade, o amor. Será que amor é sinônimo de sofrência? Será que amar está diretamente ligado à busca da outra metade que nos falta?
Na mitologia grega a história entre Eros e Psiqué é permeada por uma disputa que a deusa Afrodite destravou por se sentir eclipsada pela beleza de uma mortal (Psiqué). A incumbência recaiu a Eros, que deveria acertar Psiqué com sua flecha para que esta se apaixonasse pela primeira criatura que encontrasse. No entanto, Eros foi tomado por certa piedade e acabou se ferindo com a própria flecha apaixonando-se por Psiqué.
O desenrolar da trama acontece entre o casamento do imortal Eros com a mortal Psiqué que tinha como única “obrigação” não ver o marido jamais, apenas senti-lo. Porém, a curiosidade de Psiqué prevaleceu e em dada noite, Psiqué se aproximou de Eros com uma vela para ver-lhe o rosto, ele despertou assustado e fugiu. A partir daí, Psiqué passa por provações que Afrodite lhe impõe para recuperar o amor de Eros.
Tomado por amor incondicional, Eros recorre a Zeus para que Psiqué se torne imortal. Mediante a aprovação de Afrodite, Zeus atende o pedido de Eros e assim, Psiqué adentra o reino dos imortais.
Do amor entre Eros e Psiqué nasce a filha denominada Prazer.
Este resumido relato mitológico nos abre alguns pontos interessantes para serem apresentados. Psiqué, em grego, significa alma; podendo ser representada como nossa alma humana que passa por provações para ser purificada e preparada para gozar do amor (Bulfinch, 2014) e experimentar o prazer. E neste ponto, a situação dicotômica de amor e dor se faz presente como algo inevitável.
Mas é a dualidade das emoções que experimentamos quando amamos que faz com que possamos experienciar a real complexidade de habitar um corpo vivo, capaz de sentir e vivenciar o amor em sua intensidade, profundidade e desafios.
Platão em O Banquete debate sobre Eros e traz: “antigamente, como eu disse, éramos um só, e nossa intemperança levou o deus a nos separar (…). Nossa raça se tornaria feliz se realizássemos o amor de modo pleno e se cada um de nós encontrasse o seu amado, retomando sua natureza primitiva” (p.33/34). Essa incompletude que Platão relata é o que Lacan apresenta como a falta que o ser humano carrega, ou seja, poderia ser traduzida como a metade da laranja (cantada por Fábio Júnior) que se projeta na ideia de amor perfeito, onde o objeto de desejo passa a ser idealizado como algo que é incapaz de decepcionar.
Vale ressaltar que as relações afetivas demandam diálogo, escuta e manutenção dos acordos, o que significa, dar-se o tempo para ouvir o Outro (entendido como indivíduos da relação, indiferente de gênero) o que vai para além do estado de paixão, exige dedicação, tempo e constância.
Gary Chapman, no livro As 5 linguagens do amor apresenta formas de expressão que cada pessoa pode apresentar na relação, são elas: palavras de afirmação, presentes, atos de serviço, tempo de qualidade e toque. Para entender o Outro é preciso entender a si mesmo/a; saber identificar qual é a própria linguagem poderia ajudar a não projetar no Outro qualquer tipo de falta que possa haver em si, isto é, para a Psicanálise o amor tem relação direta com o desejo. “A constituição psíquica humana é marcada por uma falta radical que a torna eternamente desejante” (Viana, 2019), somos seres desejantes e o amor idealizado entra para preencher esse vazio que carregamos. E é através das relações que podemos enxergar nossa sombra e nossa luz, como um reflexo no espelho, o que quer dizer que através do olhar do Outro somos capazes de nos ver, entender e conhecer.
Amar é verbo e demanda ação, Bauman, em Amor Líquido diz “em todo amor há, pelo menos, dois seres, cada qual a grande incógnita na equação do outro. (…). Amar significa abrir-se ao destino, a mais sublime de todas as condições humanas, em que o medo se funde com o regozijo num almágama irreversível. Abrir-se ao destino significa, em última instância, admitir a liberdade no ser: aquela liberdade que se incorpora no Outro, o/a companheiro/a no amor” (p.21). Respeitar os espaços individuais, entender as demandas dos componentes da relação, permitir que o diálogo dos envolvidos aconteça de forma equitativa, faz parte da manutenção de uma relação mais equilibrada e duradoura.
O processo de análise ajuda na desidentificação do amor ideal e perfeccionista, a partir do momento em que inverte o olhar para si mesmo/a e, consequentemente, liberta o Outro das nossas próprias demandas, sem projeções, tornando o amor algo singular onde cada indivíduo é capaz de se expressar em sua completude, quebrando a tríade amor – dor – prazer, para então, adentrarmos nas questões do amor sem ideais ou expectativas, apenas senti-lo, assim como deveria ter feito Psiqué.
Natalia Garrido – Psicanalista
Referência Bibliográfica:
BAUMAN, Zygmunt. Amor Líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.
BULFINCH, Thomas. O Livro de Ouro da Mitologia: histórias de deuses e heróis. Rio de Janeiro: Agir, 2014.
CHAPMAN, Gary. As 5 linguagens do Amor. Editora Mundo Cristão, 2013.
PLATÃO. O Banquete. São Paulo: Principis, 2020.
VIANA, Ezequiel F.C. O Amor em uma Perspectiva Histórica e Psicanalítica. Anais do XV Encontro de Iniciação Científica da UNI7, v.9, n.1, 2019.